A mais antiga democracia contínua do mundo está em apuros. A polarização entre os dois partidos dominantes da política dos EUA há mais de 1 século nunca foi tão grande e tão prejudicial ao ambiente social, político e econômico da maior economia do mundo. O que se viu nos últimos 2 anos, com as idas e vindas da aprovação do aumento do teto da dívida americana, a longa batalha pela aprovação do novo sistema de saúde e a paralisação parcial do governo por várias semanas, tende apenas a se aprofundar, colocando em xeque o futuro da estabilidade democrática no país.
Hoje, se diz que o congressista democrata mais à direita está à esquerda do congressista republicano mais à esquerda e vice-versa. Isso, a despeito do maior grupo de eleitores do país (cerca de 35%-40%) ser o que se declara "independente" ou não alinhado a nenhum dos 2 partido, além do debate e polarização entre esquerda e direita estarem em baixa onde quer que se olhe ao redor do mundo.
Claro que, ao se tratar dos EUA, há de se relativizar o sentido que "esquerda" e "direita" e todas as infinitas variantes ideológicas dentro de cada vertente (que podem ser tema para pelo menos mais outro post). As definições baseadas no senso comum do que boa parte dos americanos considera "de esquerda" ou "de direita" pode ser vista nesse quadro (para melhor visualização clicar no linn abaixo):
Como pode ser visto acima e nas principais pesquisas de opinião recentes, a divisão não ocorre apenas dentro do Congresso americano, mas em basicamente qualquer questão social de relevância. Em nenhum tópico importante há algo próximo do consenso. Desde temas como aborto, drogas e sistema de saúde até segurança, guerras e impostos, não há só um tópico que tenha menos de 40% de pessoas pró ou contra aquele tópico entre os eleitores.
Tal divisão se reflete no discurso dos candidatos e principais apoiadores de um lado e o do outro. Pode se afirmar que a iniciativa do fundamentalismo partiu dos Republicanos quando surgiu em seu seio o grupo ultra conservador Tea Party, com seu feroz discurso de crítica a toda e qualquer política que aumentasse os gastos do governo ou tornasse a sociedade mais liberal. Mas é fácil constatar que o lado democrata também não contribuiu em nada para a estabilidade do sistema, radicalizando também seus pontos de vista e evitando negociá-los. Com a Câmara de Representantes (similar á Câmara dos Deputados no Brasil) na mão dos Republicanos e o Senado e a Presidência na mão dos Democratas, aprovar toda e qualquer lei, mesmo por maioria simples, se tornou uma batalha, que não só ameaçou paralisar, como de fato já paralisou, o país em mais de uma vez recentemente.
Até na mídia esta divisão está muito bem caracterizada pela existência de jornais, programas de rádio e até canais de TV com claro viés republicano ou democrata. O canal de notícias FOX News se tornou feroz crítico de Obama, ao ponto de suas coberturas jornalísticas chegarem ao ridículo. Do lado liberal a MSNBC faz o contraponto da FOX News. Assistir a esses canais chega quase a ser uma experiência cômica, mas ambos tem audiências gigantescas, enquanto a CNN, que tentou se manter neutra vem despencando no "IBOPE" local.
Na mídia impressa, quase todos os grandes jornais se posicionaram de um lado ou de outro, apoiando abertamente candidatos. Hoje, é possível você ler, ouvir e assistir apenas ao lado pelo qual se interessa. Se você é conservador pode apenas se informar pelos meios de comunicação conservadores. Até aí, nenhum problema, todos devem ter a liberdade de publicar o que quiserem e cada um pode ou não acessar as fontes de informação que quiser. O que ocorre é que essa divisão clara apenas aprofunda os pontos de vista de quem já é crítico ou apoiador de um partido ou outro e relega o centrismo, o debate e o contraponto à segundo plano.
De quem foi a culpa da paralisação do governo americano em 2013? Provavelmente dos dois. |
Mas nem sempre foi assim, até o começo do século passado o partido democrata era mais conservador e dominava o eleitorado no sul do país. Basta lembrar que Lincoln, considerado então um grande progressista, odiado pelos sulistas conservadores e responsável pela abolição da escravidão, era Republicano. Em especial a partir da crise de 1929 e do governo do democrata Franklin Roosevelt, o partido democrata deu uma forte guinada à centro-esquerda, tornando-se o partido progressista e de viés social-democrata nos EUA, enquanto os republicanos prontamente ocuparam o campo contrário. Desde então até o início deste século houve certa estabilidade e coesão interna dentro dos partidos, com claras diferenças ideológicas, mas em clima de debate e moderação. Desse modo o país conseguiu sair da crise e, após a segunda grande guerra, se consolidar como a potência hegemônica no bloco capitalista. Com o fim da União Soviética, da Guerra Fria e da "ameaça socialista", novos inimigos tiveram que ser encontrados e o foco da política se voltou para questões internas. Com a ascensão das novas potencias emergentes e a relativa melhora nas economias europeias (até 2008), o peso dos EUA na economia e nas decisões globais de diluiu e polarizou o discurso entre o grupo que achava que esse declínio relativo estava relacionado a derrocada dos valores econômicos liberais e sociais conservadores que tornaram os EUA hegemônico nas décadas anteriores e aquele que via a solução para tal declínio por meio da construção de uma sociedade mais igualitária e progressista, com a ampliação do guarda-chuva social e uma presença mais forte do governo na economia. O problema é que os dois grupos de distanciaram de tal modo que sobrou pouco entre eles para o debate.
Burro, símbolo do partido Democrata e Elefante, símbolo do Partido Republicano: partidos buscam novas identidades |
Exemplo claro disso ocorreu durante a última eleição presidencial, no ano passado. Durante as primárias republicanas, o candidato escolhido para enfrentar Obama, Mitt Romney, chegou a ser acusado pejorativamente de "moderado" pelos seus oponentes dentro do partido, o que revela o descalabro da ideologia dominante entre os republicanos. Um republicano não consegue atrair votos dentro de seu partido se não provar ser um "true conservative". Apoiar a legalização da maconha? Nem pensar! Ser a favor do (já vigente há décadas) direito ao aborto? Derrota na certa. Falar em aumento de gastos para gerar emprego? Só pode estar louco. Infelizmente para Mitt Romney, mas felizmente para os EUA e para o mundo, as mesmas posturas que atraem o voto dos ultraconservadores afugentam os eleitores independentes (os que decidem todas as eleições majoritárias nos EUA) e os republicanos perderam outra vez. Romney tentou equilibrar-se entre a linha de conservador moderado e ultraconservador, mudando seu discurso ao longo do tempo e dependo da ocasião em que se encontrava. Quando conseguia convencer seu partido de que era a pessoa certa, perdia eleitores no centro, quando queria agradar o centro, perdia sua base de apoio.
Haviam pontos positivos no programa de Romney? Sem dúvidas. Mas os pontos positivos eram ofuscados por debates pontuais, muitas vezes caindo para o lado moral e religioso. Ficou fácil para Obama, que nem primárias teve que enfrentar, levar a eleição.
O que será então que irá acontecer com a política americana daqui para frente? O partido democrata tende a continuar vencendo as eleições, reconquistando o controle total do Congresso e mantendo a presidência? O partido republicano se tornará cada vez mais um partido provinciano, condenado ao sucesso nos rincões longínquos e zonas rurais onde ainda reina absoluto?
Sem dúvidas as perspectivas demográficas, econômicas e sociais são bastantes negativas para os republicanos tradicionais. Além de enfrentar a realidade de uma composição partidária muito mais diversa dentro de seus quadros internos (do Tea Party aos libertários) do que a democrata, os grupos que tradicionalmente votam no partido estão perdendo sua relevância dentro da composição geral do eleitorado. São os WASP (brancos, anglo-saxões e protestantes) que moram majoritariamente nas pequenas cidades ou no campo, no Sul e Centro-Oeste do país. Ainda há maior concentração de eleitores republicanos entre os homens, as faixas mais ricas e as faixas etárias mais avançadas.
Com o crescimento das populações urbana, negra, latina e jovem, o partido democrata tende a, se nada mudar, ganhar eleitores naturalmente e gerar um cenário onde uma vitória republicana em condições normais se torne quase impossível.
Composição do eleitorado republicano por categoria |
Evidente que o republicanos já perceberam essa tendência há tempos, mas simplesmente ainda não conseguiram encontrar uma solução para reposicionar sua imagem. Uma coisa é certa: é impossível agradar os ultra-conservadores (cerca de 30% do partido) e não perder apoio de parte significativa dos eleitores independentes, como já foi provado nas últimas eleições. Há quem diga que, a cruzada para atrair o voto negro, jovem ou feminino é tão complexa e exigiria tanto esforço que a única solução viável de curto/médio prazo para que um candidato republicano tenha qualquer chance em 2016 é aprofundar ainda mais a liderança que o partido já possui nos segmentos onde é forte e incentivar um turnout (presença nas urnas) recorde dessas pessoas. Nada fácil também.
Por isso acredito que a solução, ainda que custe ao partido diversos revezes para notar, seja uma profunda mudança interna e uma forte guinada para o centro em questões morais/sociais, voltando o debate para a economia e a estratégia do país para os desafios futuros.
O problema da extrema-direita do Tea Party é que ela acredita que todas as soluções para os problemas atuais estão todas no passado, na glamourizada época dos "founding fathers" ou na Era de Ouro dos EUA. Já para a extrema-esquerda, a solução e o mundo ideal estariam em um futuro atemporal e inatingível. Mas os desafios de hoje não são os do passado e nem os do futuro.
Faltou aos políticos americanos perceber que o mundo a sua volta mudou e os EUA não reinam mais hegemônicos como a única grande potência e que aquela época dourada passou para nunca mais voltar. Em qualquer um dos casos, o que falta é olhar para o presente e seus gigantescos desafios. Isso ou a maior democracia do mundo continuará tropeçando e ficando de joelhos na mãos de extremistas. E quem perde é todo o mundo.