segunda-feira, 16 de março de 2015

Depois do 15 de março: Reflexões e caminhos

Estou perplexo. Havia 30 anos tantos brasileiros não saiam às ruas unificados por uma causa concreta e de forma tão massiva. Entre 1 e 2,2 milhões de brasileiros, de acordo com o cálculo que se considere mais conveniente*, saíram as ruas em todos os 26 estados da federação e no DF pedindo o fim da corrupção e, em sua grande maioria, a saída da presidente e de seu partido da liderança do governo federal. A amplitude das manifestações talvez seja mais importante que sua magnitude em uma ou outra cidade.

Minimizar a proporção das manifestações, chamá-las de golpismo, tentar restringi-las a um grupo específico, se calar frente as demandas populares não são mais opções aceitáveis para a situação. Basta lembrar-se da queda meteórica na aprovação do governo nos últimos 4 meses para comprovar que a tese de que apenas uma minoria está insatisfeita é a mais absoluta ficção de um governo que se nega a admitir seu erros. 

Desde os piores momentos de Fernando Collor, um presidente não tinha tamanha reprovação e o que vem pela frente depois deste dia histórico é incerto e exige reflexão.


Contextualizando: 1964 x 1992 x 2015

Surgiram instantaneamente na mente de quem observou os movimentos de ontem, comparações com 1964 (em geral vindas da esquerda e/ou de apoiadores do governo) e com 1992 (de quem acreditava que o povo na rua bastaria para derrubar o governo).

Considero que comparações com 1964 e os movimentos que anteciparam o golpe são bastante fora de propósito. A começar pelo contexto que o Brasil e o mundo viviam há 50 anos, de polarização ideológica e medo do "fantasma do comunismo", passando pelo fato de João Goulart ter sido eleito como vice de Jânio e nunca ter conquistado legitimidade frente a maioria da população e terminando com o fato que a maior parte dos manifestantes e meios de comunicação, à época, consideravam legítimo o golpe militar e a retirada de Jango do poder. Hoje, além de inconstitucional e criminosa, a incitação a um golpe militar é isolada e flagrantemente minoritária dentro das manifestações.

Já a situação de Dilma, em comparação à de Collor em 1992, guarda semelhanças e diferenças fundamentais que merecem atenção.

Como Collor, a presidente sofre uma grave crise de popularidade e legitimidade já no começo de seu mandato. A presidente tem ainda mais 45 meses frente à presidência e já mal consegue aparecer em público em qualquer lugar do país sem ser vaiada e insultada. Sua reprovação é recorde. Para agravar a situação, a deterioração econômica mal começou e o país terá ao menos 2 anos de aumento do desemprego, inflação acima da meta e crescimento pífio, senão recessão, em grande parte por causa dos erros do primeiro mandato, maquiados até o limite para assegurar uma reeleição. A deterioração da força política do governo, já bastante corroída, tende a se aprofundar conforme avancem as investigações, depoimentos e prisões da Operação Lava Jato. Não há uma única frente onde as perspectivas pareçam caminhar para o lado positivo para o governo. Essa conjuntura, uma verdadeira "tempestade perfeita" sobre o governo reduz sua área de manobra e mina qualquer possibilidade de recuperação de popularidade no curto prazo.

A diferença fundamental porém, é que ainda não há provas que liguem Dilma ao escândalo da Petrobras, o que justificaria a instalação de um processo de impeachment no congresso. Apesar dos desvios na estatal serem exponencialmente maiores e mais graves do que aqueles associados à Collor, no caso do ex-presidente, a sua associação aos crimes era clara. Além disso, Collor pertencia a um partido nanico e não contava com respaldo do congresso. Trazido ao momento presente, o episódio de Collor parece muito improvável de se repetir, já que o impeachment exige votos de 2/3 dos congressistas, e mesmo combalido, o PT deve ser capaz de mobilizar mais da metade dos parlamentares que em teoria controla, para barrarem uma eventual votação, venha ela a existir. Cabe lembrar que o impeachment é um julgamento político e não penal.

Importante notar também que hoje o país possuí uma memória democrática, o que tornaria o impeachment um processo mais doloroso e disruptivo para uma democracia que ainda almeja ser chamada de estabelecida e estável.

A quem serve um impeachment ou renúncia?

Com essas considerações feitas, acho válido e necessário que, quem reprova ferozmente o atual governo, seja por mero ódio irracional à presidente e a seu partido, seja por desilusão e revolta com as contradições entre discurso e prática da presidente ou pelos escândalos cada vez maiores de corrupção, reflita sobre as consequências de um impeachment ou renúncia.

Pela ótica da oposição, é inegável que Dilma está realizando os ajustes de que a economia, enfraquecida por 4 anos de políticas desastradas, precisava. A agenda de Aécio Neves, se eleito, não seria muito diferente. Talvez o tucano tivesse maior legitimidade para fazê-las, mas o fato é que, Dilma ao ver o precipício em que entrava, ao menos mudou de curso. Romper esse processo de correção agora, por mais traumático que ele seja e por mais incoerente para seus eleitores que possa parecer, é um erro.

Na frente da corrupção, estopim da fúria de alguns, o governo não parece estar trabalhando para obstruir investigações e poupar seus aliados. Ao contrário, os processos têm ocorrido com surpreendente grau de transparência.

Em caso de renuncia ou impeachment de Dilma, o vice-presidente Michel Temer (PMDB-SP) assumiria o cargo. Em caso da saída de ambos (na comprovação, por exemplo, da hipótese de que sua campanha foi financiada com dinheiro público desviado), Eduardo Cunha (PMDB-RJ) assumiria. 

O que Temer e seu fisiológico e rachado partido, trariam de  novo para a mesa? Partido que está tão envolvido em escândalos quanto o próprio PT e que, apesar de ser o maior partido do Brasil há 2 décadas, não consegue apresentar pautas novas ou candidatos viáveis para eleições nacionais?

Qual seriam os reais benefícios dessa solução para o país, uma vez que a descontinuidade democrática já é um grande malefício por si só?

Dilma é uma presidente fraca. Má economista, má gestora e péssima política. Seu governo é um exemplo claro de incompetência gerencial em quase todas as dimensões e levou o Brasil a retroagir. Não verifico porém, ao longo de seu mandato, justificativas para tamanho ódio e irracionalidade num momento delicado para o país sobre uma presidente que acaba de ser reeleita em eleições limpas e democráticas.

Dito isso, se novas denúncias chegarem à público e ficar incontestavelmente comprovado o envolvimento da presidente com o escândalo da Petrobras, é obrigação do congresso tomar as medidas necessárias e a desestabilização do governo chegaria a um ponto absolutamente insustentável.

Qual então a solução?

O governo precisa responder à sociedade. Tanto à oposição quanto à seus aliados desiludidos. É evidente que a atual situação é insuportável. Mas, ao mesmo tempo em que governar com uma taxa de aprovação de um dígito é inconcebível, o governo sabe que não pode abir mão das medidas que vem tomando para ajustar a economia e que as consequências da Lava Jato já estão fora de seu controle. A resposta que vimos ontem, a renovação de promessas feitas após as manifestações de junho de 2013, feita em um pronunciamento um tanto desastrado de seus ministros, é insuficiente para aplacar a onda anti-governo. Se quando tinha credibilidade, alta taxa de aprovação e a maior base aliada da história o governo não agiu para aprovar reformas e agendas de interesse popular, por que a sociedade deveria acreditar que desta vez as promessas se concretizarão?

O governo precisa resolver o enigma: como se reaproximar dessa oposição intansigente, enquanto não se distância ainda mais dos grupos que historicamente o apoiam? Tirando "o fora Dilma", é pouco claro o que os manifestantes propõe; e mesmo dentro desta pauta de "fora isso, fora aquilo", acredito que não está claro para a população o quanto essa alternativa é pouco viável e certamente traumática.

Uma resposta equivocada do governo, um mero deslize retórico, uma sinalização de desprezo às ruas, podem levar o movimento até aqui pacífico e relativamente ponderado, a uma radicalização com consequências imprevisíveis.

Cabe esperar os próximos capítulos e ter um pouco de paciência.



*Segundo os cálculos das PMs de cada estado, os protestos reuniram aproximadamente de 1,9 a 2,2 milhões de manifestantes em 185 cidades de todos os 26 estados da federação + DF, com cerca de 1 milhão apenas na Avenida Paulista e adjacências em São Paulo. O Datafolha contou 225 mil pessoas na capital paulista e cerca de 1 milhão em todo país.
Pelos números da PM, ou dos manifestantes quando a PM não divulgou seu balanço, as maiores manifestações ocorreram em São Paulo-SP (~1mi), Porto Alegre-RS (~100k), Vitória-ES (~100k), Rio de Janeiro-RJ (~80-100k), Curitiba (~80k) Goiânia-GO (~60k), Brasília (~45k), Campo Grande-MS (~32k) e Belém-PA (~30k).